sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

Medo

Lembro-me de olhar para a berma. De sentir o enorme jipe a deslizar. Já não ouvi os gritos dos pneus. Lembro-me de deixar de ver. E afinal, não o sabia, o carrocel só estava a começar.

Estou longe de estar sozinho, pois são muitos os que dizem que sentir por perto a morte muda a vida que se segue. Acrescento que ás vezes, nem é preciso ser a nossa. Saber que só por sorte não se perdeu o pai ou a mãe, a irmã, um amigo próximo ou um primo, faz-nos pensar no velho chavão. Mas a vida é mesmo um bem demasiado frágil.

É o guincho mais arrepiante que já ouvi. O som do metal a raspar no alcatrão, prensado por algumas toneladas de jipe, assusta. Pior, só mesmo o silêncio que se seguiu. Lembro-me de sentir uma pausa, segundos antes de um grande abanão.

Hoje um primo despistou-se. Piso molhado, cavalos a mais debaixo do pé direito e garantidamente que excesso de velocidade. Nada demais. Diz quem viu, que "nem ia depressa". Eu, reservo-me o direito de duvidar.

Lembro-me de olhar para trás e ver a minha mãe e a minha irmã. Lembro-me de respirar fundo ao constatar que os cintos de segurança estavam apertados e que não tinham cedido. Apercebi-me que, se assente nas portas, o habitáculo de um Discovery é do tamanho de uma sala de estar. À procura do pai, olhei para baixo e só vi chapa. Ali, bem por cima da alavanca das velocidades o tejadilho tinha cedido.


Meia dúzia de piões e um carro para sucata. Hoje o meu primo teve a sorte da vida. Ninguém lhe acertou, sobreviveu para contar e nem teve de esperar muito para ser acordado pelos senhores do INEM. Perdeu os sentidos, esperam-no vários meses de recuperação, mas não ficará com grandes mazelas.

Instintivamente, deitei a mão ao meu pai. Lembro-me bem de ver a palma da mão vermelha com sangue. Naquele momento, a última coisa que me passava pela cabeça é que a ferida não era maior que um galo na cabeça. Lembro-me da viagem até ao Hospital em que os bombeiros nos diziam que não era possível termos escapado ilesos.

Hoje o meu primo não teve a mesma sorte. Agora, recupera numa das camas do Hospital de São José, enquanto revê, dezenas de vezes, o filme do dia. Sim, ver a morte de perto, parece um filme. Nem mais, nem menos. Esquecemos bocados, a dor física nunca é tão grande como parece e no final, há sempre alguma coisa que fica. O meu primo, nunca se esquecerá a manhã em que engarrafou uma das maiores avenidas de Lisboa. Viu a morte por perto e eu sei bem o que sentiu.

A gente vai continuar



Enjoy

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